Nos últimos cinco dias eu aprendi muitas coisas em virtude do meu acidente. Uma delas é a incrível capacidade de adaptação do ser humano. Explico. Um evento como o que eu vivenciei (nem tão grave, nem tão tranqüilo) é feito de três momentos:
O primeiro: terror
É a hora do “ih, fudeu, aconteceu comigo”. A ficha demora pra cair, o nível de terror da vítima eleva-se até o topo do Everest, “abre-se uma fenda no tempo-espaço e o universo implode em caos e desespero” - frase que o Renex repetia exaustivamente no 3º colegial.
Dada a proximidade temporal com o momento em que eu decidi subir na moto, a única coisa que passa pela cabeça do acidentado é a malha de possibilidades que a vida nos coloca todos os dias. Fazendo uma analogia barata: só dá pra pensar em como o leite QUASE não foi derramado (inclusive o vocábulo “quase” tem seu momento de glória, dada a quantidade de vezes em que é repetido). Em fala de pobre: foda-se que aconteceu, o que importa é que poderia não ter acontecido.
Frases: “Que idéia, andar de moto! Que idéia!”; “Olha que eu ia pôr o tênis antes de sair, porque tava frio, mas fiquei com preguiça!”; “Juro que eu tava querendo descer da moto, eu tava com medo, mas resolvi ficar só mais um pouquinho! Por quê?! POR QUÊ?!”
O segundo: depressão
É caracterizado pelo alto índice de secreção lacrimal. Eu estava lá no pronto socorro de Itu (que eu apelidei de ER do mundo subdesenvolvido), vivenciando torturas chinesas, sentindo meu dedão dependurado ser arrancado à mão, assim, como se eles estivessem puxando a etiqueta de uma roupa nova, e sem saber direito o que ia ser de mim. Achei que nunca iria aceitar aquela ausência dedal, imagina, que horror, que horror.
Nesse momento, a angústia maior consiste em não saber o que fazer com aquele leite derramado no chão: droga, aconteceu, droga, poderia não ter acontecido, e droga, o que eu vou fazer da minha vida?
Frases: “Nããããooooo!”; “Eu vou voltar a andar, doutor????”; “E agora, se eu quiser ser atleta profissional, só vou poder participar das Para-Olimpíadas?” (obs: eu nunca tinha sequer considerado em ser atleta até o momento...)
O terceiro: resignação
Essa etapa é a hora de botar a mão na massa, pegar um paninho e limpar o leitinho do chão, sem esquecer de passar um Veja pra não ficar grudento (e, principalmente, pra não chamar barata, né). A nossa freqüência cardíaca volta ao normal, as lágrimas secam, você começa com uma piadinha daqui, outra dali, daí a pouco já dá pra escrever um livro de humor negro. Passou um certo tempo do momento fatídico, então a perda se incorpora na sua vida, vira parte da sua identidade. Fica até estranho pensar que um dia você já teve 20 dedos completos.
Frases: “Eba, vou fazer uns dedos coloridos de massinha pra colocar no lugar!”; “A vida implica em modificações, ela faz suas marcas. É até estranho você ir pro caixão do mesmo jeito que saiu do útero da sua mãe, com todos os dedos e tal. Quem faz isso é porque não aproveitou a vida.”